por ESTANISLAU MARIA AF
Vale o que está escrito. Está no Torá que os pais devem fazer a circuncisão do recém-nascido, como símbolo da aliança com Deus." "Pelo Alcorão, seguimos as tradições de Abraão e Maomé, que mandam o muçulmano fazer a circuncisão."
Durante a semana, a redação da Folha de São Paulo, que produziu a reportagem, recebeu muitas manifestações como essas, vindas das comunidades judaica e muçulmana, que discordaram da reportagem "Papo de homenzinho", do último domingo, que mostrava a tendência atual da pediatria de não operar a fimose dos meninos com menos de 3 anos. Essa orientação é dada pela Sociedade de Pediatria do Estado de São Paulo e pela Sociedade Brasileira de Urologia, seção São Paulo.
Para judeus, cujo livro sagrado é o Torá, e muçulmanos, que seguem o Alcorão, essa operação - a circuncisão ou postectomia (nome técnico) - é uma tradição religiosa obrigatória. No menino judeu, a circuncisão é feita no oitavo dia; no muçulmano, até 1 ano.
"Não há o que discutir. Está nas nossas tradições desde Abraão", defende o mohel Fernando Marsella, 37 anos. Mohel é o homem especializado em fazer circuncisões, ele deve ser um judeu praticante ou um rabino.O uropediatra Aguinaldo Nardi e o pediatra Clóvis Constantino, dizem que a fimose (pele que recobre a ponta do pênis aderente à glande e não abre) pode soltar naturalmente até os 3 anos, portanto, desaconselham a cirurgia antes disso. "Mas respeitamos as opções culturais e religiosas", ressalta Constantino.
O pediatra Jairo Len, 30, pós-graduando na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), vai de encontro à recomendação e defende a circuncisão até o 15º dia. "Judeu, muçulmano ou não", diz ele."Mas tenho uma postura ética. Não induzo os pais. Pelo contrário, muitas mães falam preocupadas: `Doutor, não abre o pintinho!' Eu explico que não abre e é normal, com o tempo pode abrir", conta Len. Mas ele defende a cirurgia e diz que não há nenhuma contra-indicação, facilita a higiene e reduz o risco de infecção urinária. "Quando eu tiver um filho, será uma das primeiras providências", completa ele.
O pediatra muçulmano Mohamad Mourad, 47, a não ser por motivos religiosos, manda esperar. "Em 20 anos de profissão, jamais induzi um casal, mas também jamais vi uma complicação grave decorrente da circuncisão", diz Mourad."Ainda assim, ensino os critérios de higiene para os pais e só recomendo a cirurgia depois dos 3 anos. Antes, só se o menino tiver problemas de infecção urinária", conta o médico, que tem três filhos, todos circuncidados antes dos 9 meses.
Len e Mourad alertam, no entanto, que a circuncisão, mesmo a feita em casa, deve seguir todos os cuidados de assepsia: bisturi esterilizado, luvas cirúrgicas, limpeza das mãos do mohel com rigor cirúrgico e o mesmo cuidado com a pele do bebê.E anestesia, sempre. "Essa história de que bebê não sente dor é balela!", diz o pediatra judeu. "A pele é fininha, mas é cortada e há dor." O mohel Fernando também defende a anestesia e as práticas com total assepsia."Tudo deve ser esterilizado e o bisturi é descartável. Também já existem pomadas anestésicas", diz.
POLÊMICA - De acordo com os especialistas, há uma polêmica em torno da circuncisão antes dos 3 anos. A principal vantagem de ordem religiosa é que para os judeus e muçulmanos, trata-se de um ritual obrigatório. Do ponto de vista médico não há contra-indicação e a pele fechada pode ser um meio de proliferação de bactérias devido ao acúmulo interno de secreção e urina. A circuncisão facilita a higiene com a glande permanentemente exposta e também previne que pais desavisados tentem reverter a fimose com "massagens".
Entre os argumentos contrários à prática estão o fato de que a pele pode abrir espontaneamente e o menino não precisaria ser operado; a criança pode ter complicações pós-operatórias com infecção na parte cortada; a pele protege contra infecções causadas pelo contato da glande com fezes e urina acumuladas na fralda; se não há fimose, a higiene pode ser feita da mesma maneira puxando a pele e expondo a glande; os pais devem saber que a massagem não resolve e nunca deve ser feita, porque pode criar a parafimose, que estrangula a ponta do pênis.
FONTE : Jornal do Commercio